Miklos Grof
CEO e fundador da Company Hero,
antiga Campus Inc
Na primeira semana de março, que marcava o início da pandemia, recebíamos atualizações deprimentes de amigos e familiares na Europa sobre o estado das coisas. Havia chegado a hora de informar as equipes sobre os perigos do coronavírus, que ainda era uma curiosidade distante no Brasil e as decisões sobre o novo formato de trabalho remoto imposto pelo isolamento social, sem data de retorno.
Assim como eu, muitos gestores não eram fãs do trabalho remoto. Acreditava-se que era um modelo operacional para equipes sem foco e sem seriedade, que não tinham uma cultura forte, DNA de inovação e certamente nenhuma visão para criar uma empresa global. Era comum pensar “não posso estar fisicamente distante” ou “o CEO tem que estar lado a lado com sua equipe, o primeiro a entrar e o último a sair”. Mas isso estava prestes a mudar.
O coronavírus forçou muitos empresários, diretores, executivos e profissionais de todos os tipos a migrar do escritório para o remoto da noite para o dia. O preconceito contra esse modelo de trabalho foi deixado de lado, porque não havia alternativas e fomos forçados a fazê-lo funcionar. Hoje, muitos estão percebendo que o trabalho remoto é bastante viável e se encaixa melhor em nossa era do que o modelo anterior. Estamos no meio de uma mudança colossal, dando um salto para reconfigurar dramaticamente nossa vida profissional para algo completamente diferente.
Para entender essa mudança, precisamos primeiro entender como chegamos até aqui.
Nascimento e ascensão dos escritórios: do Império Britânico ao taylorismo
O escritório tem uma história curiosamente curta no contexto da humanidade. Havia alguns exemplos de “escritórios” existentes desde os tempos medievais em ordens religiosas que exigiam registros ou documentação por escrito. Eram estações de trabalho silenciosas e privadas para os monges escreverem, copiarem e estudarem manuscritos. Além disso, trabalhar de casa era a norma, à qual aderiam indivíduos cujos trabalhos consistiam em papelada, contabilidade e outras atividades administrativas.
Foram organizações de larga escala, como governos e empresas comerciais, que trouxeram o escritório moderno para o mainstream. O primeiro prédio de escritórios, conhecido como The Old Admiralty Office foi construído em 1726, em Londres. Nasceu da necessidade de ajudar a lidar com a papelada gerada pela Marinha Real, resultante de um vasto e rápido crescimento do Império Britânico, que estava se envolvendo em atividades comerciais em todo o mundo, de forma crescente.
O setor privado logo seguiu o exemplo e a famosa Companhia das Índias Orientais construiu complexos para dar conta de processar grandes quantidades de documentos gerados por suas atividades que se estendiam pelo mundo. Gerenciar um império a uma distância tão grande gerava muita papelada e as coisas não chegavam na caixa de entrada em menos de um segundo; as correspondências vindas da Índia levavam de cinco a oito meses para ser entregues.
Logo, advogados, banqueiros, contadores, funcionários públicos e outros novos profissionais começaram a trabalhar em escritórios em capitais como Amsterdã, Londres e Paris. Isso levou a uma distinção cultural entre o escritório, associado ao trabalho, e o lar, associado ao conforto, privacidade e intimidade.
No final do século XIX e no início do século XX, com o surgimento de tecnologias de comunicação como o telégrafo e a rápida expansão da indústria ferroviária, a força de trabalho de “colarinho branco” superou a força de trabalho de “colarinho azul”. Isso levou a um boom na demanda por escritórios e ao nascimento de arranha-céus.
É interessante notar que a inspiração por trás dos escritórios é o desejo de eficiência produtiva adotado a partir de uma mentalidade industrial. O arquiteto Frank Lloyd Wright é creditado pela introdução do espaço de escritório de plano aberto para o mundo. Esse é um layout que continua a dominar a história do nosso escritório. No Edifício Larkin – inaugurado em Nova Iorque em 1906, Lloyd Wright projetou um escritório como uma fábrica de plano aberto, com poucas paredes.
Os escritórios enfatizaram o “taylorismo”, uma metodologia criada pelo engenheiro mecânico Frank Taylor, que buscava maximizar a eficiência industrial. Assim, os escritórios adotam um layout rígido e regulamentado, que resultou em trabalhadores sentados em fileiras intermináveis de mesas com gerentes localizados em escritórios circundantes, onde podiam ser observados, de maneira semelhante à adotada nas fábricas.
Com o crescimento do comércio global e o aumento da conectividade, mais e mais empresas passaram a envolver grandes operações que geram muita papelada e, portanto, precisam de uma grande força de trabalho. Os escritórios eram as novas fábricas onde os trabalhadores de colarinho branco eram reunidos diariamente para operacionalizar esses processos.
Com a invenção da luz elétrica, sistemas de ar condicionado e também o sistema de telégrafo, grandes arranha-céus projetados para acomodar inúmeras empresas e seus funcionários começaram a aparecer em cidades dos EUA e em algumas partes do Reino Unido. As cidades se tornaram mais densas e mais densamente povoadas, e o deslocamento diário nasceu.
Longas jornadas, deslocamentos intermináveis e a dessincronização dos escritórios
Assim, o escritório tornou-se inseparável do trabalho. Agora, pessoas de todo o mundo acordam e fazem um trajeto diário que toma um grande investimento de tempo, sem mencionar seus impactos negativos no clima e em nossa saúde mental e física. Um levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que as pessoas das regiões metropolitanas brasileiras gastam mais de uma hora por dia se deslocando. Em São Paulo, por exemplo, o tempo médio de viagem por dia é de 1,5 horas (que resulta em um total de até 400 horas por ano).
E o que esse trajeto está fazendo conosco? Está nos deixando extremamente estressados e infelizes. A Pesquisa Europeia de Viajantes da Ford, com 5.503 passageiros em Barcelona, Berlim, Londres, Madri, Paris e Roma, constatou que, para eles, “a jornada para o trabalho causa mais estresse do que seus empregos em si”.
Mas pelo menos somos mais produtivos, certo? Na verdade, não. Só porque vamos ao escritório não significa que somos produtivos – significa apenas que tivemos que vestir calças. “Os 4.800 funcionários da sede da varejista de roupas americana JC Penney, por exemplo, gastam 30% da banda larga de internet da empresa assistindo a vídeos do youtube”, escreve Jason Fried em seu livro Remote.
Escritórios tornaram-se fábricas de interrupção. Nossos dias são fragmentados em seções cheias de reuniões, teleconferências, colegas barulhentos etc. É difícil conseguir ter uma produção significativa. Por “produção significativa”, leia-se trabalho criativo, atencioso, importante, que requer intervalos maiores de tempo ininterrupto para entrar no ‘estado de fluxo’. Eu nunca ouvi um colega de equipe dizer que eles vão ao escritório para resolver tarefas sem um qualificador como “mais cedo” ou “mais tarde”, quando as pessoas não estão no escritório. Pessoalmente, divido meu tempo em duas partes: quando a equipe está presente e quando não está, reservando madrugadas e noites para realizar tarefas importantes, pois o período das 9h às 18h geralmente se torna um malabarismo cheio de adrenalina causado pelo modus operandi do escritório.
Claramente, algo está errado. É evidente que nem empregado nem empregador estão 100% satisfeitos. Parece que nossos modos atuais de estar no mundo estão cada vez mais desatualizados e incapazes de lidar com os desafios que estamos enfrentando. Vivemos um período de transição em que o antigo está começando a se deteriorar, mas o novo ainda não tomou forma.
Os primeiros passos de uma nova era do trabalho
Que mudanças veremos quando a sociedade voltar ao normal e o isolamento acabar? É provável que vejamos uma redução no deslocamento e uma mudança no uso de espaços comerciais, porque as pessoas se adaptaram ao uso da tecnologia de trabalho remoto durante a crise. Muitas empresas estão dando o salto. Agora, mais pessoas sentem que podem trabalhar em casa de maneira bem-sucedida, e os empregadores veem que a produtividade não é tão impactada por esse trabalho remoto. As empresas já começaram a declarar que os trabalhadores podem trabalhar de qualquer lugar a qualquer momento, também após a pandemia. Um exemplo recente é o Twitter, ao lado de várias empresas brasileiras, como mostrado no estudo do Valor Econômico.
Até alguns anos atrás, o trabalho remoto nessa escala parecia inviável. Hoje, nossas rotinas de trabalho refletem uma enorme mudança, tanto em termos de tecnologia quanto de maturidade do consumidor. Por exemplo, muitas pessoas não estavam de fato acostumadas a videoconferências. Agora, vemos as reuniões via Zoom, Teams etc. se tornarem parte da infraestrutura das escolas e a vida social de nossos idosos também foi para o ambiente online.
Isso significa que abandonaremos completamente os espaços comerciais e nos mudaremos para o interior e para as cidades litorâneas? Não necessariamente. Vejo algumas coisas acontecendo nos próximos anos:
Remoto em primeiro lugar
A colaboração humana continuará a desempenhar um papel importante em nossa sociedade, mas estamos adotando o remoto em primeiro lugar – uma ideia de priorizar o trabalho remoto e colocar em segundo lugar o trabalho centralizado em um espaço de escritório. Este é essencialmente um modelo híbrido. Provavelmente faremos uma divisão 75%-25% em favor do trabalho remoto. De acordo com um estudo realizado pelos funcionários da Buffer e da Angel List Remote, eles ficam mais felizes quando passam mais de 76% do tempo trabalhando remotamente. É provável que o uso do escritório seja destinado para treinamentos, formação de equipes, projetos especiais e mudança de cenário.
Transformação do escritório
Nossa percepção do escritório mudará e começaremos a perceber e usar nossos escritórios principalmente como um local para conhecer, colaborar, compartilhar experiências, aprender e formar equipes. Um ótimo exemplo disso é a XP: o espaço pode vir a contar com a sala de cinema 4D, instalação, complexo esportivo, heliponto, berçário, bibliotecas, hotel, salas de reunião e treinamento, além de diversos espaços personalizados para incentivar a convivência entre as pessoas (funcionários, clientes etc). Como resultado, veremos escritórios e espaços de coworking que permitem a prática de hotdesking em espaços que reproduzem o acolhimento de um lar.
Hubs de escritórios locais
Veremos um aumento de escritórios ou hubs locais, localizados perto da casa dos trabalhadores. Serão locais criados especificamente para trabalho e reuniões, que podem ser equipados com mesas de escritório, WiFi, impressoras, café e salas de reuniões, como é o caso da Ericsson. Isso resultará em empresas que provavelmente reduzirão suas sedes e abrirão escritórios regionais/hubs comunitários menores para seus colaboradores cada vez mais distribuídos geograficamente.
Terceiros Espaços
Estar remoto não significa necessariamente trabalhar somente de casa. Trabalhar em casa tem seus desafios inegáveis, como vemos abaixo. Assim, teremos cada vez mais um terceiro espaço em nossas vidas. Vamos morar em casa, trabalhar em um local de trabalho designado, provavelmente uma estação de escritório em casa, e ter um terceiro espaço onde podemos passar um tempo valioso fora de casa. Provavelmente, estes serão espaços públicos – bibliotecas, cafeterias, espaço de coworking, centros de escritórios perto de casa. Andreas Klinger, Head de Remote da AngelList, afirma que “o próximo concorrente significativo da Starbucks não tentará expulsar trabalhadores remotos, mas sim – com um modelo de negócios adaptado – atraí-los”.
Avanços em inovação e tecnologia
Nos próximos 10 anos, veremos enormes saltos em tecnologia que, de acordo com as 10 tendências de consumo da Ericsson, farão com que as realidades físicas e digitais sejam indistinguíveis até 2030. Muitos prevêem que as linhas entre “pensar” e “fazer” ficarão mais difusas e, graças a tecnologias como VR, AR e secretárias pessoais de IA, permaneceremos conectados e produtivos, não importa onde estamos.
Em conclusão, a tecnologia acelerou o ritmo de nossas vidas. Estamos interconectados 24 horas por dia. Fornecedores, concorrentes e clientes estão sempre acordados em algum lugar do mundo. Longe vão os dias em que os documentos demoravam oito meses para chegar em nossas mesas, da Índia a Londres. Nossas tecnologias de email, mensagens instantâneas e videoconferência tornam as informações acessíveis de maneira fácil e imediata. É importante ressaltar que nossos cérebros estão trabalhando e processando informações quase sempre, independentemente de onde estamos fisicamente.
Antes do coronavírus, estávamos em um período de transição incomum. A distinção entre casa e trabalho estava se tornando cada vez mais vaga. Estamos levando o trabalho para casa em nossos telefones celulares e laptops e escritórios estão se transformando para parecerem nossas casas, para trazer conforto a uma força de trabalho cada vez mais cansada e estressada, que enfrenta longas jornadas enquanto lida com uma era de troca de informações cada vez mais rápida.
Funcionários e empregadores em todo o mundo têm sentido a dor de um modelo operacional que parecia cada vez mais desatualizado. O trabalho remoto tornou-se lentamente um benefício cedido a alguns (principalmente talentos altamente qualificados) que foram os primeiros a conseguir exigir maior flexibilidade e a se libertar da loucura de se arrastar para lá e para cá em conformidade com um modelo desatualizado concebido durante a industrialização e baseada no papel-e-caneta. Existe uma conscientização geral de que não produzimos com nossa presença física, mas com nossas mentes que podem se conectar cada vez mais online. Mas não fizemos a mudança por medo e por sentirmos que não era viável.
Agora, a covid-19 abriu as comportas. Fomos coletivamente forçados a experimentar um novo modelo e descobrir como fazê-lo funcionar. Embora o trabalho remoto tenha se mostrado um obstáculo quando apenas uma minoria trabalhava remotamente, está provando ser altamente eficaz e benéfico quando todos estão no mesmo barco.
Estamos dando os primeiros passos de uma nova era da vida profissional. O trabalho híbrido baseado em princípios remotos, em que os resultados são mais importantes do que a presença física é o novo normal.